domingo, 28 de março de 2010

Um Prato



Os movimentos precisos não eram fruto de algum talento ou coisa que o valha. Repetição e furor forjaram o ritmo, a sincronia, a perfeição em cada etapa:

Escova seca, pano úmido, lona e graxa.

Escova, borrifos d’água, escova, lona e graxa.

Escova, borrifos d’água, escova, e, finalmente, um pedaço de pano sintético de uns trinta centímetros estirado numa síncope frenética em cima do sapato de couro.

Em cada uma dessas etapas, os músculos do antebraço eram o motor das duas mão enormes.

Há trinta anos estes mesmos músculos moviam dois martelos que castigavam a cara de mecânicos, chapas e motoristas de caminhão no meio das pilhas de caixotes de madeira nos pátios do Ceasa.

Em troca, ganhava uma montanha de arroz e feijão – um bom bife de vaca reinando em cima de tudo. E muitos socos também.

Depois de um ano de glória e fama nas academias do Bexiga e da Barra Funda, onde chegou até a lutar por algum dinheiro e calçar luvas, tudo foi se apagando lentamente, voltando ao prato com bife. Até que não sobrou mais nada. E ele trocou as luvas por uma caixa com banco na Praça Clóvis.

Há uns 10 anos engraxava no aeroporto.

O nariz achatado e a hidrografia de cicatrizes no rosto punham nele um ar de este-cara-esconde-alguma-coisa. O que era reforçado pelo jeito silencioso.

Mas isso era só porque não tinha o que falar – e ele odiava quem falava sem nada a dizer. Se bem que, por ele, quase nunca alguém teria alguma razão para dizer algo.

Em sua opinião, “por aqui”, “obrigado”, “oi”, “quero isso” e “custa tanto” já davam um vocabulário e tanto para a humanidade.

Na pequena sala se espremiam umas dez cadeiras, daquelas com estofado, dois moldes de ferro fundido para por os pés, uma caixa de apetrechos embaixo. E se revezavam dúzias de bacanas metidos em seus ternos com centenas de aparelhinhos nervosos, falando sem parar.

Ele se defendia do ambiente de salão de beleza com os fones de ouvido: Milionário e José Rico eram todo o repertório de que precisava.

Chegava ao meio dia, depois do café no bar da esquina da pensão em que morava. No fim do dia comia a mesma coisa de sempre, com método e raiva:

Um prato de arroz, duas conchas de feijão.

E um bife grande, em cima de tudo.


...

Veja aqui a animação "Un Buen Bistec", sobre conto de Jack London, "A Piece of Steak".

domingo, 21 de março de 2010

Outro Lado

Ficheiro:Grande Sertao Veredas 1.jpg



Santiago Cruz riscava a estrada a 140 por hora num daqueles volks de caçamba, dois lugares. Vermelho, queimado de sol, o retrovisor direito quebrado.

Break on Through, no talo.

Depois de um raro aclive, uma curva à esquerda rasgava a monotonia dos últimos 50 kilômetros de reta. Um pequeno mergulho e ali estavam postadas as duas criaturas.

Ele passou voando, mas guardou alguns fotogramas na memória.

Quadro a quadro, viu o fim de uma vereda que se transformava num breve milharal, as bonecas florescendo acima das espigas, sinal de que a colheita já tardava.

Mas isso, Santiago não sabia. Não era de seu mundo, e sim daquela coisa paralela que se derramava pelas bordas da estrada em direção ao curto riacho que dava sentido à vereda – e aos habitantes do milharal. Mancha úmida no meio de terra seca, de pequenas árvores retorcidas, raras palmeiras.

Mato, milho, asfalto.

Mato, milho, asfalto, um rosto chupado emoldurado por uma pasta de cabelo ralo.

Mato, milho, asfalto e um rosto: pendurado logo abaixo dos fios sobre o crânio, um nariz e lábios finos.

De criança para a adolescência.

Mato, milho, asfalto.

Com o alguém, algo.

Parecia um outro alguém, mas era algo. Cara de coisa, jeito de bicho, olhar de gente. Mãos, ou qualquer coisa que o valha, agarrado às mãos da menina. Santiago achou que era uma menina, ou assim lhe pareceu melhor.

Calculou se aquilo era efeito do último baseado, junto com Doors, a velocidade e o calor. Mas sabia, no fundo, que era mais complicado. Entrava em outro lugar.

O Grande Sertão.

Terra dos quase, ou mais-que, gente. Terra de Catrumanos.

Um outro lado.

domingo, 14 de março de 2010

Teogonia



Quando Henrico Pontes tinha 28 anos, descobriu a religião. Ela tinha olhos amendoados, os dedos longos, um céu de estrelas no rosto – meio pomo em cada um dos lábios.

Uma fuga sublime.

Pelo menos, assim lhe pareceu.

Ergueu tantos templos e, estranho, eram todos à Deusa profana que acabara de criar.

Tinha lá os seus demônios, mas, como na praga de Sartre, eles eram os outros.

Entre ele e sua divindade, só entendimento.

domingo, 7 de março de 2010

Dois Haikais de Quintal


A Tarde

Luzes e bambus
Dançam na música
Feita de vento



Confusão

Capoeira no chão
Sabiá e Calango
Um só caminho


E falando em sabiás,

sábado, 6 de março de 2010

As Brumas e a Boca do Rio





Mais do que diz a música de Caetano, a Baía de Guanabara pareceu a Lévi-Strauss uma boca desdentada: o Pão de Açúcar e o Corcovado cacos de dentes espalhados por seus cantos.
Atravessar um oceano e passar por uma ensolarada Fernando de Noronha, chegar ao Rio de barco, num mês de brumas, tem lá o seu efeito. Se redimiu escrevendo "o Rio é mordido por sua Baía até o coração".
Mas o Rio, ou melhor, a beleza do Rio, pode até ser boca – jamais, porém, banguela. Seus dentes mastigam a gente e cospem outra pessoa: mais em paz, mais simples, mais livre. Um mais que é menos.
O Rio é uma fêmea voraz, com a boca faminta de metamorfoses.

O jeito bom de ver o Rio, segundo Lévi-Strauss.