terça-feira, 13 de abril de 2010

Açucareiro de Bar

Sem Título, Jean Michel Basquiat, 1984.


O açucareiro era daqueles de metal, com um bico de tampa quebrada em cima. A minúscula portinhola que deveria regular a passagem do açúcar tinha sumido há muito tempo.

Talvez um acesso de fúria do balconista, talvez o desgaste pelo uso, talvez qualquer coisa – vai lá saber o que acontece às tampinhas de açucareiro de metal dos botecos.

Pode ser que elas nem existam.

Pois ele pegou o açucareiro, com a certeza dos justos, e o virou sobre um copo de vidro ocupado até pouco mais de sua metade com café fumegante.

Caiu muito, e a ilusão de que usar açucareiro de metal era que nem andar de bicicleta – ele tinha pensado nisso antes de empunhar o negócio - foi pelo ralo.

Exigia arte, apuro e, mais do que tudo, hábito.

Que ele não tinha, já que a decisão de adoçar o café surgira minutos antes, depois de décadas, quando pensou:

- Daqui pra frente, vou adoçar meu café. Vou adoçar minha vida.

Já era hora. Tinha uns 50 anos e sua vida era um saco.

E quem fazia o inferno consigo era ele mesmo. Nunca, jamais, ele agira ao acaso.

Um bom dia, que damos como quem masca chiclete ou vê as horas no relógio de pulso, era para ele um jogo de xadrez.

Olhou a cara do porteiro e, em segundos, calculou se valeria um bom dia – e um bom dia só valia se houvesse réplica, em sua contabilidade de ofendido pelo mundo. Parecia ser gente boa, 85% de chance de responder ”bom dia”. Mas tinha a cara enfiada no jornal, na página de esportes, que derrubava as possibilidades para 10%, segundo a série histórica dos porteiros que lêem a página de esportes dos jornais. O cara não ia responder, era melhor ficar quieto.

O diabinho da calculadora urdia tudo em sua cabeça: mandava no dono.

- Bom dia, disse o porteiro, descendo o jornal que deixava escapar o título da página sensacionalista: Timão Massacra Bambis.

- Bom dia, retrucava entre os dentes, amargando a derrota de ter levado um xeque-mate assim, logo na primeira hora do dia.

Entrou no elevador. Apenas desconhecidos: um sujeito ao celular, berrando que ia cair, uma loirinha comendo as unhas, uma morena gorda lendo as notícias na telinha colocada acima dos botões dos andares.

Calculou rapidamente a chance de algum dos ocupantes estar ligado na entrada de mais um passageiro, meia-idade, óculos, roupas ordinárias, bafo de café recém-adquirido e uma meia-careca de estilo franciscano.

Chances remotas. Ficou quieto e recebeu como resposta o silêncio constrangido dos elevadores.

Vibrou por dentro: 1 a 1.

Quando o elevador deu aquele pequeno soco que anuncia, antes do plim e da voz de telemarketing, a chegada a um andar, começou a habitual taquicardia.

A porta se abriu e o refrão de uma música pop lhe soou mentalmente, junto com o pulso acelerado e a visão de Maria Cristina. Cabelo pintado de ruivo, franja e prováveis 30 e poucos num corpo miúdo.

O pequeno demônio da calculadora nocauteado por uma tempestadade de substâncias químicas, a sopa do caos que fazia trovejar impulsos eletromagnéticos, enxurradas de sinapses e o escambau.

O conjunto que lhe dava bom dia era a razão da promessa de ir ao médico na próxima semana. E também da pergunta que se fazia há exatos quatro anos:

- O que há de errado com meu coração?

domingo, 4 de abril de 2010

Um Quadro Feio

Jeronimus Bosch, Cristo Com a Cruz nas Costas, Museu Schone Kusnten, Gante.


Pela primeira vez na vida, ele se emocionou com uma obra de arte. Aquilo era feio pra burro. Uma excitação foi tomando conta dos seus sentidos, como jamais ocorrera antes diante de um livro.

Depois de folhear ao acaso suas páginas, num sebo da Praça Dom José Gaspar, ele se viu maravilhado diante das figuras, começando por um velho com olhos pequeninos de rinoceronte que produziam um ar obtuso.

O centro da cara vermelha ladeada pelo tom acinzentado, um enorme nariz adunco brotando do meio da testa que terminava em cima dos beiços esticados pra frente. Uma papada de lagarto fazia as vezes de pescoço. Da orelha enorme que escapava de um gorro preto, pendia um brinco estranho.

Parecia ser rico. Parecia ter raiva. Parecia ser um bispo.

Embaixo do velho, um gordo com três piercings em argola, colocados ao redor da bocona redonda aberta no centro da cara bruta, ligados por uma fina corrente, deixando entrever três dentes meio podres. Segurando a cruz, no meio de uma pequena multidão de outros tipos hediondos, um Cristo de olhos fechados, cansado da feiúra do mundo.

Sentou no segundo degrau da escada que levava ao mezanino e passou a mão sobre a página. Quem estivesse perto poderia achar aque ele lhe fazia um carinho.

Nunca tinha visto um quadro assim. Na sala da tia havia uma pequena marina a óleo, de cacoete impressionista, uma unanimidade entre a família. Todos admiravam aquilo, exclamando coisas do tipo “que lindo, que beleza” ou “parece que estamos lá dentro” e ainda “dá uma tranquilidade só de olhar.”

Ele odiava aquela porra daquela tela.

E desde pequeno era assim. Na sexta-feira à noite ficava junto com o primo esperando aparecer o Zé do Caixão na TV em preto e branco: umas unhas retorcidas apontadas diretamente para o telespectador, os olhos ameaçadores e a voz de ator tosco intimando:

- Voooooocê!

Enquanto o primo abria o berreiro e esfregava uma fralda no rosto para esconder o personagem medonho, ele segurava o pinto, excitado. Corria para fazer xixi e depois dormia feliz.

Eram sensações parecidas com aquelas dos programas do Zé do Caixão que a memória lhe trazia agora, olhando a obra de Jeronimus Bosch. O pintor flamengo do final do século XVI que vivera no Ducado de Brabante e plasmava todo tipo de miséria humana: a avareza, a ira, a soberba, a ganância, a inveja - e tudo o mais que a Igreja condenava no papel e praticava no dia a dia.

Um dos pintores que melhor representou o feio, o abjeto, o nojo.

O quadro, cuja reprodução mirava, tinha, portanto, uns 500 anos – algo como a idade do Brasil.

Mas disso ele nada sabia – nem gibi gostava de ler. Só tinha entrado no sebo porque era sujo e feio.

E também porque, depois de anos, resolveu fuçar no único recanto ainda intocado daquela praça pra gastar o tempo que sobrava do almoço.

De volta ao escritório, ainda meio tonto pelas imagens que desfilavam em sua cabeça, sentiu um comichão no pinto e correu para o banheiro.

Ali, mijou feliz. Como há anos não fazia.