domingo, 4 de abril de 2010

Um Quadro Feio

Jeronimus Bosch, Cristo Com a Cruz nas Costas, Museu Schone Kusnten, Gante.


Pela primeira vez na vida, ele se emocionou com uma obra de arte. Aquilo era feio pra burro. Uma excitação foi tomando conta dos seus sentidos, como jamais ocorrera antes diante de um livro.

Depois de folhear ao acaso suas páginas, num sebo da Praça Dom José Gaspar, ele se viu maravilhado diante das figuras, começando por um velho com olhos pequeninos de rinoceronte que produziam um ar obtuso.

O centro da cara vermelha ladeada pelo tom acinzentado, um enorme nariz adunco brotando do meio da testa que terminava em cima dos beiços esticados pra frente. Uma papada de lagarto fazia as vezes de pescoço. Da orelha enorme que escapava de um gorro preto, pendia um brinco estranho.

Parecia ser rico. Parecia ter raiva. Parecia ser um bispo.

Embaixo do velho, um gordo com três piercings em argola, colocados ao redor da bocona redonda aberta no centro da cara bruta, ligados por uma fina corrente, deixando entrever três dentes meio podres. Segurando a cruz, no meio de uma pequena multidão de outros tipos hediondos, um Cristo de olhos fechados, cansado da feiúra do mundo.

Sentou no segundo degrau da escada que levava ao mezanino e passou a mão sobre a página. Quem estivesse perto poderia achar aque ele lhe fazia um carinho.

Nunca tinha visto um quadro assim. Na sala da tia havia uma pequena marina a óleo, de cacoete impressionista, uma unanimidade entre a família. Todos admiravam aquilo, exclamando coisas do tipo “que lindo, que beleza” ou “parece que estamos lá dentro” e ainda “dá uma tranquilidade só de olhar.”

Ele odiava aquela porra daquela tela.

E desde pequeno era assim. Na sexta-feira à noite ficava junto com o primo esperando aparecer o Zé do Caixão na TV em preto e branco: umas unhas retorcidas apontadas diretamente para o telespectador, os olhos ameaçadores e a voz de ator tosco intimando:

- Voooooocê!

Enquanto o primo abria o berreiro e esfregava uma fralda no rosto para esconder o personagem medonho, ele segurava o pinto, excitado. Corria para fazer xixi e depois dormia feliz.

Eram sensações parecidas com aquelas dos programas do Zé do Caixão que a memória lhe trazia agora, olhando a obra de Jeronimus Bosch. O pintor flamengo do final do século XVI que vivera no Ducado de Brabante e plasmava todo tipo de miséria humana: a avareza, a ira, a soberba, a ganância, a inveja - e tudo o mais que a Igreja condenava no papel e praticava no dia a dia.

Um dos pintores que melhor representou o feio, o abjeto, o nojo.

O quadro, cuja reprodução mirava, tinha, portanto, uns 500 anos – algo como a idade do Brasil.

Mas disso ele nada sabia – nem gibi gostava de ler. Só tinha entrado no sebo porque era sujo e feio.

E também porque, depois de anos, resolveu fuçar no único recanto ainda intocado daquela praça pra gastar o tempo que sobrava do almoço.

De volta ao escritório, ainda meio tonto pelas imagens que desfilavam em sua cabeça, sentiu um comichão no pinto e correu para o banheiro.

Ali, mijou feliz. Como há anos não fazia.

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